9 de agosto de 2023

Lutosplaining

às vezes dias ruins começam com um metrô perdido, cheio de gente, fechando a porta antes que eu possa colocar meus dois pés pra dentro. às vezes começam como um dia bom, o metrô vazio, ufa, entrei, me sentei, abri meu livro, cheguei, e então, eu tenho de ouvir por duas horas alguém me explicando e me questionando sobre o significado de luto, de perda, de dor da ausência, como se esse sentimento não tivesse cavado um buraco no meu peito que eu sei, eu sei que não vai ser preenchido nunca.

sentimento de luto não passa, sabia? dor não ameniza, sabia? compreensão não vem fácil, eu nunca disse que viria, ninguém nunca ousou dizer. pobre paga funeral com vaquinha? disso eu sei como você não sabe. de tudo isso eu sei bem, como alguém que carrega um corte de papel na orelha.

sabe, papai, eu penso que você riria disso comigo. em parte, é esse pensamento que me faz cócegas na ferida e é também o que me impede de desistir em dias difíceis. mas será que eu não deveria pensar o contrário? às vezes, muitas, tudo que eu queria era desistir, deixar o que me machuca ir embora, dar menos chance pros dias ruins, começar de novo, tentar um caminho diferente, inesperado, que me dê sentido, que não me explique como funciona isso de perder o caminho de volta.

20 de setembro de 2022

tangível

 eu não acho que o amor faça parte das coisas não-tangíveis. 

eu costumava dizer que o gostar se explicava por tudo aquilo que compõe as pessoas. os interesses, o jeito de falar, de ouvir, de enxergar, de significar, de existir no mundo. enquanto amar era maior, um mistério enérgico, cármico, algo que sentimos e não conseguimos colocar em palavras: não tangível. não me lembro exatamente onde eu li isso, mas me pareceu tão verdadeiro, tão ressoante com a menina que acreditava religiosamente na teoria do pó de estrela, que resolvi abraçar essa ideia que, sim, era bonita, mas igualmente traiçoeira. 

uma vez, enquanto pegava uma carona com duas mulheres desconhecidas, uma delas virou pra outra e disse que amar era uma escolha. uma escolha que ela tinha de fazer todos os dias, como um contrato que se renova a cada nascer do sol. revirei os olhos. achei a ideia absurda. pra mim, o amor era uma escolha única, que eu havia assinado uma só vez, porque era forte, consistente, porque não fazia parte do mundo palpável, embora eu o alimentasse com tudo que eu tinha. o amor era quase mágico.

mas se eu tinha tanta confiança nessa ideia, por que me incomodava tanto a visão de uma estranha? aquilo me assombrou por dias, meses, e pouco a pouco fui entendendo que era porque meu coração se identificava com o que havia sido dito. porque era uma verdade dura de se ouvir, já que isso seria admitir que a base do que eu considerava amor era mais frágil do que eu pensava e que seria cada vez mais pesado e cansativo e doloroso sustentar esse peso conscientemente.

se o amor era uma escolha diária, não teria como ser também um deus intocável. seria um paradoxo. escolhas se fazem de razão e emoção, e mesmo a emoção se constrói pelas nossas crenças, em um ciclo tão extraordinário quanto qualquer tipo de magia. mais, até.

hoje eu vejo que as coisas mais mágicas que eu já vivi e senti (e vivo e sinto) vieram (e vêm) nos meus momentos mais conscientes. quando eu soube (e sei) que o amor é visível, palpável e tangível. o amor tem rosto, cheiro, apetite, jeitos de ser, e pra continuar existindo, precisa ser observado. visto. ouvido. e as poucas coisas que não se explicam são como confete, que faz parte da cena como um elemento extra.

e mesmo o confete se vê. a magia é tangível, assim como o amor.

eu vejo.

23 de agosto de 2022

quem desenhou o fim, quem desenhou a solidão?

como uma porta sanfona sensível ao vento, que abre, fecha, abre, fecha, abre, fecha. sozinha.

tudo se acabou aos poucos. um dia, você, obcecado com a ideia de ser o responsável pela minha vida (função que nunca lhe atribuí), se esqueceu de mim. me via, mas não me ouvia. parou de me contar histórias. me abandonou no porão da sua casa com a promessa de me trazer todas as joias preciosas do mundo. e eu não precisaria fazer nada. não precisaria me preocupar com nada. acontece que eu nunca pedi nada disso. o que me preocupava era ficar ali, trancada, atrás da porta que você mesmo fechou, sozinha, à espera de você.

e eu te disse. muitas vezes. você dizia "a porta não está trancada, pode abrir". girei a maçaneta e nada de você. você chorava, insistia. eu tentava de novo. foram meses e meses girando a maçaneta em vão. sozinha, à espera de você. trancada, atrás da porra que você mesmo fechou. e isso você covardemente chamou de amor.

até que me cansei de esperar. parei de precisar da sua casa. aproveitei a solidão, essa na qual você me colocou, pra entender quem eu era de verdade. então eu vi que não precisava mais de você. não precisava da dor que isso me causava. não precisava desse tipo de amor.

precisei ser corajosa. arranquei um pedaço do meu coração, saí pela janela e gritei "a porta está fechada". fui forçada a reconhecer isso sozinha. fui embora. 

por muito tempo, senti culpa por ter sido aquela que foi embora. por ter seguido minha vida, por ter chorado tão menos do que você depois que acabou de vez. fui obrigada a presenciar sua dor enquanto minha vida florescia, enquanto eu me descobria enquanto indivíduo, enquanto o amor mais puro surgia e me curava, e isso me trazia mais culpa.

mas quem foi embora primeiro foi você. quem gritou e se recusou a me ouvir foi você. você renunciou ao seu direito de me amar. eu só fui a pessoa que teve coragem suficiente pra reconhecer o fim, depois de muito tempo me libertando da dependência, da posição de passividade e incapacidade na qual você me colocou com suas paranoias patriarcais de que precisava ser o "homem da casa", aquele que passa o dia inteiro fora, longe, provendo o necessário. provendo o que eu nunca pedi. 

e mesmo sabendo de tudo isso, essa culpa permaneceu dentro de mim. essa culpa tornou sua presença um desconforto, porque sentia que a minha presença era um desconforto pra você. e agora, vejo que ela ocupou tanto espaço que mal percebi as feridas de abandono que ficaram comigo.

nada acabou bem, em uma conversa tranquila à beira do mar, como tentei me convencer de que teria sido, não fossem as circunstâncias. você sabe disso. eu sei disso. não foram necessárias palavras a mais. mantive o carinho, apesar das feridas, mas coloquei uma distância bem delimitada. construí minha casa longe de você. então por que te vejo na porta, levando pra si as pessoas que eu convidei? remexendo as feridas que você mesmo causou?

você desenhou o limite entre nós primeiro. depois, foi a minha vez. é a minha vez.

não quero fechar portas de novo e de novo. não quero esvaziar minha casa. não quero ficar sozinha. e é isso que a sua presença me traz: solidão.

22 de agosto de 2022

i am both in love and fearing the future

    Tenho buscado uma palavra sem descrição ou uma descrição sem palavra. Talvez exista palavra, talvez exista descrição; separadas, desconectadas, avulsas no universo dos sentimentos inexplicáveis e não catalogados. Alguém as desconectou? Alguém em tentativa de censura, como fariam em uma distopia onde a violência é um passado impronunciável e o futuro é um conceito vazio? Eu?

    É nostalgia, mas não do passado. Uma saudade do presente. Nos últimos dias, parece que vivo à espera e com medo do próximo dia. Eu gosto tanto da vida aqui, agora, e ainda assim, não é nela que me sinto. Me sinto em eterna contagem regressiva, em busca do dia em que a tatuagem vai ter cicatrizado, o dia de comprar um vestido bonito, o dia de terminar aquele texto, o dia de dar aquele abraço. Mas acima de tudo, em busca daquilo que não posso controlar, que não posso planejar ou prever: o dia do respiro aliviado, do conforto em uma pele que é minha e habita o mundo por completo e não se sente tocando as unhas no vidro de um globo de neve grande cheio de cores e em movimento. 

    E se tudo que acordou diferente em mim for disfarce e as partes ruins estão aqui adormecidas e prestes a despertar? E quanto ao que falta, ao que aguarda contato com o mundo lá fora? Terei eu a capacidade de confrontar isso finalmente?

    Sinto falta desse globo de neve, por mais que eu tenha me colocado de fora dele tantas vezes compulsoriamente. E anseio por estar dentro dele, em ar, água, fogo e terra. Mergulhar os pés na água, me aquecer, dedos na terra molhada, respirar, respirar, respirar. É tudo que me alimenta, tudo que faz meu coração bater.

     Essas primeiras palavras saíram quando o mundo começava a voltar aos eixos pré-pandêmicos. Aquele momento trouxe traumas antigos, uma familiar sensação de observar o mundo de fora. Foi assustador, porque é um sentimento que eu achava ter superado por inteiro. Nos últimos dois anos, aprendi a me amar e me sentir protagonista de uma história que só eu posso escrever. Foi e tem sido um processo longo, de me condicionar a ser mais gentil comigo mesma, acima de tudo. De tornar a vida mais leve.

    Alguns meses se passaram. Resolvi respeitar meu tempo e precisei reaprender meus limites, tentando não confundir limite e medo. Ainda é um constante aprendizado, acho até que eterno. Aprendendo e vivendo, vivendo e aprendendo, simultaneamente. Mas agora, há tanto acontecendo e tantos limites e medos sendo testados que todas as inseguranças voltam com tudo. É tanta sobrecarga que mal dá absorver uma coisa por vez. É tanta sobrecarga que não consigo processar o que mais precisava ser processado no agora: um momento de transição e celebração muito diferente do que eu imaginava. Com minha mãe e minha irmã em outro estado, com meu pai e minha avó em outro plano espiritual.

    É tão estranho. Vou me formar, finalmente. Em um lugar que eu nem pensava ser pra mim. O que me faz ver, ao menos, que nem toda lacuna de imaginação vazia é ruim. Para o bem e para o mal, vai ser diferente do que eu esperava. E por mais que vá comemorar isso na presença de algumas pessoas especiais pra mim, tantas vão fazer falta e isso faz eu me sentir tão sozinha, no fim das contas. Devo ficar feliz por cantar minha história feliz, ou triste por ver alguns assentos não preenchidos? Sempre vai ter uma parte de mim vazia, como esses assentos? Eu tinha pavor de pensar em todos os futuros sem meu pai, e agora que um deles chegou, eu não sei o que fazer.

    Sei o que não queria: ter tanto medo. Me ver acuada, me sentir descartável e preterível. Observar aquilo que eu tinha de sólido ameaçando se desmanchar e aquilo que eu tinha de instável explodir sem que eu possa correr pra um abrigo, longe de todos os destroços. Ter que seguir pisando em cacos de vidro com os pés já machucados. Agora eu odeio alturas. Odeio estar fora do controle. Odeio palavras comedidas, mas odeio ainda mais aquelas que não são nada pensadas. Odeio a necessidade de ser compreensiva e odeio fingir que está tudo bem. Não está. 

    No fim das contas, vou fazer o que sempre faço. Tentar ouvir a voz do amor que se foi e do amor que se faz.

18 de outubro de 2021

saber e sentir é tão diferente

se eu queria ser menor
por que me sentir menor é estranho?

uma vez alguém me disse que
eu não fiz por merecer
que o meu coração cigano
nunca ia se aquecer

mas daqui
eu posso ouvir
todas as palavras
que ninguém teve coragem de criar

sei que amor é um jeito simples de falar
mas quem disse que eu quero complicar?

saber e sentir
é tão diferente
todos os sentidos
pés e mãos no chão e o brilho do que vem

as histórias que eu não vou contar em vão
e pro medo eu quero sempre dizer não.

7 de novembro de 2020

me encontre nas minhas fantasias

em círculos de projeção de um futuro quase mágico

intocado, intocável, longe das sombras do agora

é lá, é aqui, é um espaço-tempo que não existe

é no fundo de tudo que é dor e desejo

é onde eu vou estar até cessar o medo.


onde todas as cores que eu ganho não bastam

que as quantas perco você mal pode imaginar

então crio, recrio, e tudo termina em desmanche

no buraco que insiste em me puxar.


na ausência do abraço me vejo em asas

e o corpo que pesa em angústia se transforma

em pura adrenalina que me tira do chão

na mais absurda das velocidades 

até que a agonia desaparece

entre as luzes das cidades.


em certo ponto desse céu

aterrissar perde importância

como pede o manual das fantasias:

não olhar pra baixo

não pensar em cair

não se perguntar pra onde ir.


se quer saber como me encontrar

é essa a descrição que vai te guiar

o lugar em que euforia é mais que sopro

e nenhum sopro escapa o presente

e o presente é só o presente.

14 de maio de 2020

Assistia muito filme de terror, tinha medo de dormir com os pés descobertos. Eu não dormia sozinha nunca, mas não tinha medo disso. Tinha medo de tantas coisas, e ao mesmo tempo nada. Agora tenho medo de tudo. Não sei dormir sozinha, não sei chamar de casa. Fiz meu canto-sem-canto.